1.5.06

Dá um conto!

No feriadão do dia Mundial do Trabalho eu fui até um ponto de ônibus para pegar o Vila Livieiro. O Vila Livieiro é o tipo de ônibus que durante a semana quase não passa, no feriado então, não passa duas vezes.


Conferi o relógio no celular que indicava: 14:20 cravados. Olhei para os lados e a rua mostrava-se deserta. Dez minutos mais tarde eu havia contado a passagem de uns três carros em velocidade típica de um domingo, moroso e sem graça. Para passar o tempo fiquei contando o número de passos do ponto até o próximo poste, o número era sempre 26. Depois de inúmeros testes peguei bronca do número 26. Mais uma conferida no relógio e desta vez: 14:40.


Levantei os olhos na direção de onde deveria vir o ônibus e avistei um velho lá na esquina bem longe, que andava tão devagar quanto uma lesma com sono e mancava da perna direita. Eu estava sentado numa pequena mureta e a bunda já estava doendo e tomando a forma do assento provisório, então eu levantei e fiquei observando o velho.


Depois de muito tempo, o velho finalmente chegou até o ponto. Estava muito bem vestido e sua aparência era serena. Ficou ali um tempo parado me olhando, e então disse:
- É melhor você sentar porque é feriado e o ônibus vai demorar.
- Cansei de ficar sentado e agora estou em pé.
- É, vai ficar cansado outra vez. - disse o velho.

Assim, debaixo de uma árvore, num ponto de ônibus sem ônibus, eu e aquele velho ficamos conversando. O cara é uma grande figura, contou tudo sobre ele: por onde já trabalhou, como foi dura a faculdade de Administração de Empresas no interior de São Paulo, sua mãe de 84 anos é velha mas é um touro e toma conta dele até hoje; falou também sobre o acidente que sofreu no ano passado, as mulheres de sua vida, os programas com os amigos, o futebol, o sonho de ser músico, enfim, ficou ali, narrando uma série de historias engraçadas, e hora e outra tínhamos que espantar uns mosquitinhos que saiam da árvore e nos perturbavam. O ônibus? Nem sinal.


De repente, do deserto instalado naquela rua, surge um cara com a metade da minha altura usando uma mochila da minha altura e todo sujo. Fomos abordados:
- Com licença, alguém tem cinqüenta centavos? - perguntou com o olhar fixo no vazio.
Antes que alguém pudesse entregar uma resposta ele continuou:
- Olha, eu não bebo! Eu só quero ir pra casa. - nessa hora todos os mosquitos sumiram, o bafo de pinga era tanto que seria possível criar uma fogueira com um espirro daquele homem.

Em seguida o homem-com-bafo-de-pinga-que-não-bebia, começou a falar sobre um problema que tem na cabeça e por isso precisava ir embora e, afastando o cabelo mostrou que realmente faltava um bom pedaço de osso do crânio. Meu estomago queria ir para um lado e o meu corpo para outro. O velho começou a falar alto e pôs a perna direita na mureta, levantou a calça até o joelho e mostrou a canela toda machucada. Era horrível, a pele parecia um glacê de bolo, úmido e opaco, frágil e nojento, a pele fina exibia pequenas veias e uma parte do osso da canela. O outro homem, o homem-com-bafo-de-pinga-que-não-bebia, dava sua replica alegando tomar Gardenal e tarja preta. Eu apertava os olhos querendo ignorar a cruel disputa pelo troféu "Eu sou mais fudido que você". O velho começou a falar mais alto ainda mandado o cara de meio metro ou menos, ir embora, e que o bafo dele era uma merda e que não daria dinheiro nenhum. Completamente insultado o homem-com-bafo-de-pinga-que-não-bebia saiu andando e reclamando numa língua desconhecida.


O velho iniciou uma elaborada palestra sobre as diferentes formas de abordagem. Fez duas ou três sugestões excelentes de abordagens que poderiam render sucesso ao homem-com-bafo-de-pinga-que-não-bebia e algo mais que cinqüenta centavos.
- Esse cara é burro, - continuava - se realmente quisesse ir embora, iria ao ponto onde passa o ônibus que ele precisa e pediria dois reais, e não cinqüenta centavos. Cara trouxa!

Eu apenas ria enquanto o discurso seguia:
- Ele poderia ser mais esperto. Antes fosse até a Praça Campo de Bagatelle ver se ganhava um apartamento no sorteio logo após o show do Calipso.

Essa foi ótima, se o velho tivesse um Orkut, eu dava-lhe uma estrelinha de fã.


Os impropérios contra as pessoas-que-pedem-dinheiro não cessou, ele tinha as mais variadas teorias sobre o assunto. Falou sobre comportamento, opções de vestuário, e que ter uma criança junto é muito importante pois as pessoas ficam sensibilizadas e que ficar mostrando ferida era uma mesmice da Escola Antiga (Escola Antiga?! Tem escola de esmola? E é antiga, ou sei lá, tradicional?), atestado médico qualquer um consegue, é muito fácil, basta conversar com algum homem-placa na Praça da Sé que você arranja um.


Depois dessa de Escola Antiga, o cara merece um depoimento no Orkut.


E a aula no feriado não terminava, eu dobrava de rir de tanta genialidade do velho com a perna arrebentada.


Por fim o ônibus apareceu lá no outro farol, era ele, o bendito Vila Livieiro, conferi o celular e, fiquei espantado, já eram 15:30!!!!. O velho conseguiu enxergar o ônibus e estendeu a mão para uma despedida, desejou boa sorte e soltou essa:
- Dá um conto ai, pra eu tomar uma branca!

Eu dei um real, e agora ele merece uma comunidade.
O Paciente apresentou quadro de delírio em 1.5.06    Envie esse post par e-mail.

2 Receitas:

Anonymous Anônimo deixou sua receita em 3/5/06 19:43.

Hahahahaha, realmente, eu daria até 10,00 pro cara, só pela sinceridade.
E agradeça ao anjo bom que colocou esse velho junto com você no ponto. Imagina ficar uma hora esperando o ônibus sozinho? Foi a melhor espera de ônibus que vc já teve, diz ai? Ops, corrigindo, segunda, acho q o post anterior foi a primeira, rs =*
Saudades das conversas da tarde...

 
Anonymous Anônimo deixou sua receita em 8/5/06 18:00.

Sua forma de escrever continua sendo inigualável ... pareçe que consigo ver sua cara e ouvir vc reclamando !! rs

 

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