16.1.07

Benefício número 755 - comando para irritar


No sábado fiquei em casa esperando a tempestade que o serviço meteorológico prometeu a semana toda. Nada acontecia. Exceto um estranho telefonema perto da hora do almoço. Uma tal Daniela da UNE ao telefone. Essa Daniela começou a questionar algo sobre minha ausência na reunião de um dia que já havia passado e que eu perderia o benefício número 755. Eu nem sabia de beneficio algum. Isso já me irritou. Em pleno sábado chato pra caramba essa fulana me enche o saco com uma conversa. Ai ela pergunta da carta, do comunicado. Também não recebi nada. Voltei de viagem e ficou uma pilha de correspondência para abrir, era bem provável que o comunicado do benefício 755 estivesse por lá. Em certo momento ela cita a palavra: 'graduação'. Isso chamou minha atenção.


- Então, Daniela, podemos conversar na segunda? - tentei encerrar a conversa.
- Podemos sim. Eu só queria fazer a entrevista e saber qual curso você gostaria de fazer. O seu benefício é de 50% em qualquer curso. Você já tem uma formação?
- Já tenho sim.
- Tem interrese em uma outra?
- Talvez. Como posso saber quais são os cursos?
- Anote um endereço.


O endereço da unidade próxima da minha casa, era numa avenida bem conhecida, no número 75. Tudo ficou claro na nossa conversa, que nesse endereço eu conversaria com alguém da UNE.


Corri até lá, chegando antes da tempestade que ameaçava.
Já a porta, não parecia 'um escritório da UNE', conferi o número e estava certo, 75. O nome da avenida também. Entrei e perguntei sobre algo relacionado a UNE. Isso foi a senha.


- Qual o número do seu beneficio?


Falei o número e a moça da recepção pediu o RG para confirmar. A besta que vos escreve entregou o documento. No exato momento me vi dentro de uma dessas escolas de cursos de informática e idioma. Puta merda! Não acredito que cai nesse papo. O teor da minha conversa com a maluca da Daniela era sobre curso de graduação. Não essa coisa onde eu estava.


O arrependimento me acertou em cheio, e junto, o barulho que vinha da chuva. Lá fora, tudo ficava prateado.


Sentei numa das cadeiras da recepção para mirabolar uma forma de sair correndo daquele lugar. Nada surgiu na mente. Vi meu RG na mão de um sujeito muito estranho, um cara grandão que parecia o Nerso da Capetinga uns 20 anos mais jovem. Ele se aproximou, perguntou se eu era o cara do RG e se apresentou:


- Oi, meu nome é Rogério, quero lhe dar as boas-vindas, e os parabéns por escolher a nossa escola.


Meu sangue ferveu. A figura falou aquilo com um excesso irritante de educação e uma atenção muito mal ensaiada. Não consegui sacar se ele parecia mais uma mulher falando ou imitava uma mulher falando, mas plagiava mal de qualquer forma. Seus gestos também eram estranhos, ele parecia ter molas desajustadas em todas as articulações. Dei uma resposta:


- Dispenso as boas-vindas, não fiz escolha alguma, isso é um engano, um grande engano.


O cara revirou os olhos em 180 graus:


- Bobagem. Vamos conversar.
- Vamos poupar o nosso tempo. Estou aqui por engano. Uma conversa estranha com uma tal Daniela da UNE, acho que houve um mal entendido.
- Ah, você falou com a Dani? - que intimidade. - Então o seu benéfico é bom. Vamos, vou apresentar a escola.


Com toda a água que caia, eu não tinha saída. Mesmo assim o preveni que ele perderia tempo. Mas ele insistiu um pouco mais. Concordei em conversar e não queria conhecer a escola. Ele relutou, mas concordou em apenas conversar. Levou-me até uma sala cheia de vidros onde era possível ver toda a escola, apontou uma cadeira para eu sentar, disse para ficar a vontade e que logo voltaria.


A cadeira que sentei era a pior do mundo. Completamente desconfortável. Pequena, dura, torta e feia. Do outro lado da mesa tinha uma cadeira muito melhor, e provavelmente era do sujeito. Na maior cara de pau, troquei as cadeiras. Agora sim estava a vontade. A cadeira era macia, reclinava e tinha braços.


A figura volta para a sala com uma papelada enorme nas mãos e pergunta se eu quero um café. Respondo: "Não, obrigado". Nisto, ele nota a troca das cadeiras e fez um número perigoso de expressões com o rosto que se continuasse por mais um minuto ficaria daquele jeito pra sempre. Aquelas contrações faciais deveriam ser algumas palavras que ele preferiu não dizer. Sábia decisão.


Nos primeiros dez segundos de conversa minha suspeita foi confirmada, o cara tentaria me vender um curso de PowerPoint e adjacentes. Ao seu lado havia uma pilha de folders, um de cada curso. Ele estava com muita energia para vender aquilo tudo. Rejeitei imediatamente os dois primeiros cursos que ele mostrou. Ele se mostrou sem paciência - e logo corrigiu a postura para não parecer que ficou impaciente -, tudo que ele me mostrava eu dizia já ter ou conhecer. Em certa altura decidi que aquilo parecia um teste de Rorschach. Ele escancarava o folder na minha cara e eu dizia: "Não", "Não", "Não", e para tudo eu teria a mesma resposta e fingiria interesse pelo último, fosse o que fosse. Fez várias investidas com outros cursos. Fui mais veemente nas negativas. Mas ele estava disposto e me irritar. E eu também. Pra mim, sem problema, aquela chuva toda lá fora me prenderia ali por muito tempo. Fiquei doido com o fato de ter caído nessa conversa fiada e resolvi entrar no jogo. E o último curso era de inglês.


- Ah, acho que inglês interessa, qual é o valor do curso?


Agora começa o calvário. A minha pergunta é o gancho para ele colocar em prática toda a maldita técnica de irritar pessoas. Essas pessoas devem trabalhar sob a ameaça de terem a pele arrancada para decorar algum abajur se perderem a venda.


Ele começou a falar da metodologia, dos livros, dos professores, da técnica disso, e daquilo, e blá, blá, blá... O tempo foi passando... passando... e eu cortei:


- Rogério! Quanto eu vou gastar para fazer esse curso?
- Calma, eu vou chegar lá.
- Eu só quero saber o preço. Não adianta contar toda essa historia, estou ficando cansado.


Mas o cara era de fibra, queria por toda a lei manter a própria pele sobre si. Com o mesmo excesso de educação de antes, e agora sim, parecendo uma bichona prestes a perder o controle, começou a falar mais rápido e dar detalhes banais e a cada segundo, a cadeira dele, que era para eu sentar, parecia ficar mais desconfortável. A minha que era a dele, agora era minha. Eu recostei e cruzei a perna fazendo um T, acomodei os dois braços relaxadamente no apoio de braços da cadeira. Ele não conseguiu disfarçar a ira, me fulminou com os olhos porque no manual dele não dizia nada sobre ter a cadeira trocada. Continuou a falar e eu nem prestei atenção, contei mentalmente até algum número e então interrompi novamente:


- Chega! Você está me dando sono. Não quero fazer nada, não sei quanto custa o curso. Tudo está confuso.
- Aqui não é assim. Eu tenho que te falar essas coisas, não é como no açougue onde você entra assim e... - começou a fazer um gesto todo desastrado imitando alguém no açougue - e pede um quilo de acém, paga e vai embora.


Hora de deixá-lo um pouco mais irritado:


- Ow...! que bom que o açougue não é assim. Imagina se o doido do açougueiro começa a contar a história do corte de acém para cada cliente? Nunca mais eu volto.
- É, mas aqui eu tenho que contar.
- Então eu vou indo. Não quero ouvir histórias.
- NÃO!!!. Um minuto!


Ele ficou bravo mesmo. Então é hora de piorar as coisas fingindo que confundi o nome dele:


- Sem crise, Roberto, você vai me falar o valor do curso?
- É Rogério.
- Ok! Quanto custa?


Contemplei a manifestação mais ordinária do mundo. O sujeito teve um treco. Colocou a mão na cabeça parecendo um comercial de remédio contra dor de cabeça enquanto falava mais afetado ainda:


- Aiiii, você me irrita!
- Jura? Vai me falar o preço?
- Calma! Eu vou chegar lá.


Ele virou o folder do curso, e fez quatro círculos, um embaixo do outro, e dentro de cada um fez um sinal de "mais". No primeiro círculo escreveu: Camiseta.


- Você vai ter a camiseta do curso, com a identificação da escola e...
- Pára, pode parar! Que história é essa de camiseta? E ainda tem mais três tópicos para explicar? Não quero a camiseta do curso. Quero saber quanto custa. É difícil? Você precisa perguntar para alguém? Eu espero. Vai lá.


Ele reagiu pegando a caneta e escreveu no último tópico o valor da mensalidade: R$ 399,00, material: R$ 1.500,00 e matrícula: R$ 120,00.


- Não posso pagar por isso.
- Criatura, você tem o benefício 755, vai sair pela metade.
- Trinta minutos de conversa e você só consegue responder o que não quero saber. Pra mim chega, Roberto.
- Não é Roberto, é Ro-gé-ri-o!
- Roberto ou Rogério, é tudo igual. - afastei a cadeira e ameacei levantar. - Não quero nada, não sei quanto custa.


Ele abriu uma pasta, tirou uma carta e pôs sobre a mesa.


- Está vendo isto? E a carta da UNE que autoriza o seu benefício. Você tem certeza que não quer?
- Tenho muita certeza. Não suporto mais um minuto dessa conversa imbecil.
- Muito bem. - escreveu "CACELADO" bem grande, em diagonal ascendente da esquerda para a direita. Escreveu com raiva e ia reforçando cada uma das letras como se aquilo fosse um voodoo meu.
- Rogério - coloquei o dedo indicador entre as letras "A" e "C" -, está faltando um "N" bem aqui.
- Agora lembrou meu nome? - escorria suor pela testa dele.
- Na verdade lembrei de outra coisa, acho que agora aceito o café...e o desconto já facilita. Mas você rasurou minha carta de autorização.


Prontamente ele abriu a pasta e pegou uma cópia.


- Tenho uma cópia aqui. - pôs ela na mesa.
- Ah, ótimo, como mágica. - provoquei - E o café?
- Cara, você é doente?
- Não. Só quero o café, não remédios.


Ele saiu perplexo, talvez para arrancar a própria pele ou para buscar o café. Eu saí logo atrás, tomei o caminho da rua pensando: quero ser bom.
O Paciente apresentou quadro de delírio em 16.1.07    Envie esse post par e-mail.

6 Receitas:

Anonymous Anônimo deixou sua receita em 16/1/07 11:02.

Hahahahahahaha, sem comentários...
Se eu fosse o cara sua pele ia estar pendurada na parede da minha sala....

 
Anonymous Anônimo deixou sua receita em 18/1/07 09:58.

bicho nao seja bom, seja justo em conformidade às circunstâncias.

um abraço !!!!

 
Anonymous Anônimo deixou sua receita em 21/1/07 00:09.

Hei Dr Noh, o tempo passa e vc se supera cada vez mais...hehehe

 
Anonymous Anônimo deixou sua receita em 24/1/07 19:47.

Hahahahahahahaha. Eu cheguei a pensar que era fantasia, mas vindo de vc, acho que não. Hahahahahaha
Só vc seria capaz de matar o tédio de um sábado ameçador como este com esse tipo de acontecimento. Pelo menos alguém consegue se divertir com o mau humor dos outros. Quem dera eu fazer isso.
Bjos moço!

 
Anonymous Anônimo deixou sua receita em 1/2/07 15:05.

Doctor Hass Chucrutz,

Fiquei doente com a pegadinha do 755! E qual é o remédio para isso? 171?

Abs

Criativo de Galochas

 
Anonymous Anônimo deixou sua receita em 13/2/07 17:32.

eu receito curso intensivo de treinamento em testar limites.
Pq desta vez vc foi campeão!

Mas com certeza a história foi mais legal contada pessoalmente... Como vc viu...tive acessos de riso!

 

Postar um comentário

<< Voltar para o quarto do paciente