14.9.06

Açúcar

Pausa. Quarta-feira agitada, reunião longa no centro da cidade, já é o início da noite, próxima parada: Rua Japurá, 11 - padaria Palma de Ouro. Por voltas das nove da noite, e apesar de muito cheia tive sorte de encontrar um bom lugar no balcão com vista para toda a padaria.


A moça bonita passou com uma bandeja de brownies fumegantes. Sorriu, contornou o balcão e acomodou a bandeja dentro de uma estufa de vidro com outras delícias provocantes, acertou o avental preto antes de dizer:


- Foi atendido?
- Não, entrei agora.


Ela espera o pedido levantando as sobrancelhas, quase sorrindo, mas pareceu mais uma careta.


- Um brownie, aquele de cima, e um café... puro!


Enquanto a máquina de espresso gemia como gostava e soltava seus vapores, meus olhos correram as paredes decoradas com fotos P&B do centro antigo. O passado, ainda há quem o consuma.


- Aqui - disse a moça enquanto servia.


Primeiro o brownie num pires quadrado, depois o café escuro e denso, em sua superfície algumas partes pequenas de espuma se desmanchavam em um tímido tom rosado e depois escureciam até sumir.


Ela sorriu novamente e eu vi um dente manchado com batom. Antes que eu pudesse retribuir o sorriso ela segue o roteiro:


- Açúcar ou adoçante?
- Açúcar.


De algum lugar que eu não vi, ela levantou o açucareiro e o colocou sobre o balcão, longe do café e do outro lado, perto do brownie.


Puxei o açucareiro para mais perto, voltei a olhar as imagens na parede sem prestar atenção no que fazia. Acho que baixei a tampa do açucareiro, nem lembro, mas sei que o afastei com as costas dos dedos. Mergulhei a lustrosa colher de inox no café e agitei o açúcar no fundo da xícara, senti o peso do açúcar na colher fazer resistência, até parecia areia de tanto açúcar. Novas espumas apareceram e foram elas, o café e todo o açúcar num espiral só. Havia exagerado sem notar. Mais algumas voltas com a colher, duas batidinhas na borda da xícara e a colher volta para o pires e repousa. E agora a asa da xícara, tão pequena, porque fazem assim? Isso é para mãos de criança, tem que pegar com muita força, e foi o que fiz. Segurei firme e levantei a xícara, quase ia tocar a borda com a boca e minha concentração foi interrompida por uma brisa que entrou carregada de aromas. Meus sentidos se confundiram, voltei a xícara devagar para o pires, fechei os olhos com força e eles encheram de lágrima, minha pele arrepiou e cenas daquele lugar se remontaram em cores e atmosfera - um maldito presságio da primavera.


Só alguns segundos para que eu me recuperasse, bastava passar dois dedos em cada olho. Tudo certo. Continuei... xícara na mão, e agora mais perto da boca. Um gole. Puta merda, que doce, insuportavelmente doce!


Já falei que o açúcar oculta o sabor real daquilo que você come ou bebe? E muito açúcar, sabe o que acontece? Nem uma abelha provaria desse café. Jamais bote algo demais no que você prova. Isto serve para tudo, qualquer coisa. Lancei a colher para dentro da xícara e dei mais algumas voltas com ela, seria inútil. Misturar mais não resolveria. A brisa persistiu e eu cedi.


Levantei atordoado, a mente estava em outro lugar, e aquele sabor medonho na boca irritava; paguei a conta e saí. Pelo vidro do lado de fora vi o brownie do mesmo jeito que foi servido, a colher afogada no café, eu afogado na lembrança que a brisa trouxe, a estação, e o vento batendo na minha cara, ressuscitando o que tanto desejo matar... Caminhei rápido numa direção que não importa, querendo ir embora, querendo que tudo fosse embora, a estação, o perfume, a dor.
O Paciente apresentou quadro de delírio em 14.9.06
Receite um medicamento: 6    Envie esse post par e-mail.