2.12.06

A pomba e a valsa

Eu entrei em casa num sábado às oito e pouco da manhã e fui recebido com a notícia que íamos para o litoral. E para quem não gosta da praia, não gosta da maresia, da areia e do calor, e que não gosta do que a maioria gosta, fazer essa viagem e para o litoral seria um verdadeiro pé saco. Tudo bem, era sábado e mesmo que eu tivesse acabado de voltar do escritório depois de ter madrugando trabalhando num projeto, que por fim, o cliente fez alterações significativas, e o projeto não foi concluído, o que iria atrasar mais ainda, eu tinha que achar tudo normal. Isso seria outro pé no saco.


Ninguém deve agüentar o mal-humor alheio. Eu, que sou mal-humorado sem motivo, imagine agora, com motivo.


Depois da notícia, eu resolvi não pensar naquilo, aceitei e fui com parte da família para o litoral (a outra parte viajou para outro canto). Irritado e questionando todo o grande trabalho da noite e que ainda havia alteração no projeto atrasado, e agora, indo para o litoral (que ódio), eu tinha vontade de berrar bem alto!


Na ocasião estávamos fora da temporada, a qualquer hora que saíssemos seria bom. Nem por isso fomos tão cedo... Achei até que era muito tarde para um bate-volta, contudo chegamos pouco antes das onze da manhã.


Onze da manhã. Agora sim, mais de 28 horas ligado. Eu queria muito dormir, mas naquele calor, naquela umidade horrível, seria impossível. Eu só tive tempo de zanzar para lá e para cá até que meu avô notasse que eram onze horas. A hora sagrada, a hora da voltinha na orla, a voltinha que meu avô faz religiosamente todos os dias:

- Lucas, são onze horas. Nós vamos andar na praia. Eu você e seu pai. - parecia uma ordem.

Eu não ia conseguir dormir, não havia nada para fazer, e para não ter que ajudar com o almoço - a verdade é que eu nunca ajudei, mas vai saber que bem desta vez, alguém me pede? O melhor a fazer era ir andar. Aproveitei que já estava com o traje apropriado: tênis, calça jeans, camiseta e para completar, peguei um horrível chapéu de palha da minha avó. Assim estaria protegido da areia e os ventos carregados de maresia, e de tênis, ninguém vai até areia.


Aquele lugar é um deserto fora da temporada. Um deserto feio. Areia suja e nada para fazer a não ser reclamar - boa idéia, eu poderia passar horas reclamando, eu poderia até criar um curso universitário de reclamação... Minha profunda má vontade e o sono impediam até mesmo a boca de falar, deixando todo o protesto cozinhando debaixo do chapéu de palha enquanto andávamos pela orla da praia. Meu avô ia fazendo os mesmos comentários de sempre, eu até sabia cada um de cor. Ai veio um novo comentário, ou estava fora da ordem e eu achei que fosse novo. Ele levantou o braço mostrando a praia e falou "quem não gosta disso é doente", olhei em volta e havia poucas pessoas sãs. Nem por isso eu desistira de reclamar.


Fomos até um ponto e voltamos. Vi o incrível coqueiro que dá coco amarelo, só existe aquele no litoral paulista, pergunte para o meu avô, só tem aquele.


Quando eu pensei que o passeio chegava ao fim, resolveram parar num quiosque e eu, ainda sem força para argumentar sentei a mesa com eles, bem de frente para a praia. Pedimos uma porção de alguma coisa e três cervejas; acabei bebendo também, já estava tão aéreo de sono que aquilo seria o tiro de misericórdia. Nem sei por que bebi, eu não gosto de cerveja.


O rádio no quiosque estava ligado e começou a tocar By My Side - INXS. Fiquei prestando atenção naquela letra, o quanto era comum a mim no momento que eu viva... Uma pomba passou andando distraída perto da nossa mesa e meu avô apontou discreto para a pomba como se ela fosse ficar ofendida se percebesse. E disse:

- Falei pro seu Zé fazer uma varsa; olhar as pombas e fazer uma varsa. Eu disse assim: olhe as pombas nos fios e escreva uma varsa. (Seu Zé é o zelador do prédio)
- Varsa? - fiquei confuso.
- Valsa! - meu pai corrigiu.
- Como? Uma valsa? - quis entender.
- Não sabe o que é uma varsa? - meu avô disse mudando de posição na cadeira e indo com o corpo todo para frente desencostando da cadeira, fechou a mão fazendo um sinal de positivo e apontou com o dedão para as caixas acústicas atrás dele. - Não é essa porcaria que ta tocando. - ele nem sabia o que era, mas achava uma porcaria.
- Han, ok, e como ele ia escrever uma valsa? - continuei o raciocínio desprezando o comentário sobre a porcaria.
- Já viu como as pombas ficam nos fios? Igual onde escrevem músicas, aqueles risquinhos, um monte de linhas, sabe?
- Uma partitura? Putz! Uma partitura. - e comecei a rir.
- É! Isso mesmo. Viu como você sabe! - e recostou na cadeira de plástico satisfeito com a descoberta.


Ele voltou os olhos para a pomba que voou em seguida. Depois mirou o horizonte e assim ficou. Tudo aquilo era esquisito. A pomba, aquela mesa, aquela cerveja na minha frente, aquele papo doido, a minha imensa má vontade com tudo. Aquela situação isósceles, nós três, três gerações, três cervejas, e talvez meu avô não saiba, mas a valsa tem três tempos, assim como a vida.
O Paciente apresentou quadro de delírio em 2.12.06
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