24.4.07

Toda bondade será punida - parte I


Parado no ponto de ônibus, eu fazia umas contas de cabeça, viajando longe, tentando descobrir exatamente o quanto a farmácia havia lucrado com todas as unidades de Cetoconazol que eu comprei. Fiquei imaginando que meu corpo poderia começar a desenvolver um terceiro braço, ou obter super poderes com tantas essas doses que ingeri.


Foram seis meses e muito dinheiro para tratar uma unha odiosa. Uma unha no dedo do pé. Pura crueldade genética colocar uma unha dessas no meu pé. Causa tanto espanto, que acredite, já ouvi: "Te amo, mas tenho medo da sua unha". Medo? Como alguém tem medo de uma unha? Tudo bem, é mesmo horrível. Para ter uma idéia simples da coisa, imagine uma barata cascuda, albina e anã. Agora, imagine isso abraçado ao final de um dedo no pé. É isto que parece.


Os cálculos do remédio estavam altos, abandonei a idéia de continuar assim que avistei o ônibus. Lá vinha, aquele mesmo, o 5611/10. Sobre esse ônibus, eu já falei que muitas pessoas no mesmo horário aguardam esse ônibus? E que também, 'muitas', é no sentido de muitas serem muitas mesmo? Pois bem, e todas elas estavam lá enquanto o ônibus vinha... e vinha mais perto, mais perto e parou com a porta de embarque bem à minha frente. Eu deveria sorrir para sorte, desta vez eu conseguiria um assento, qualquer um da minha escolha.


A porta se abriu, segurei o suporte do lado direito da porta, coloquei o pé direito no primeiro degrau e em seguida tive que desistir de subir. Lá no alto, no último degrau uma velha manobrava seu corpo enorme, fazendo aquele slow-motion agonizante que só os velhos conseguem dramatizar tão bem. A velha queria descer. Estava determinada a fazer isso, e demonstrou sua vontade deixando a gravidade conduzi-la escada abaixo. Imediatamente me vi entre uma velha terrivelmente grande e dezenas de desmiolados que me empurrariam ônibus adentro ao menor sinal de hesitação. Não havia escolha, eu até poderia forçar a passagem, mas optei pela bondade incompensável. E claro, arcar com as conseqüências que costumam ser proporcional a sua ação.


Aconteceu que tive de retornar usando força sobrenatural para impedir que toda a multidão do lado de fora não entrasse, evitando que me levassem de encontro com o dinossauro que vinha descendo descontroladamente. Fiz toda a força que pude e consegui recuar, talvez um metro e meio para dar passagem. Conquistei aquele espacinho para ela, continuei firme para as pessoas não avançarem enquanto a velha descia toda desigual. O primeiro degrau, "plá", socou no chão do ônibus um tamanco que parecia ter sola de madeira fez um som seco e pesado, era cheio de laços amarrados ao tornozelo. Agora, ela parecia duende gigante... Continuou a descer, sacudindo-se como um saco cheio de tralhas. Ela segurava uma sacolinha suja numa mão, uma rosa murcha e a foto de uma santa na outra. Quando conseguiu passar todo o corpo pela porta, aterrissou no planeta Terra. Exatamente entre todo o espaço vazio do universo e a minha unha. Sim, a unha feia, cravou o salto largo e quadrado do tamanco sobre ela.


- Caraaaaaaaaaleo! (desculpe, mas foi o que eu gritei), Vá pá puta que o pariu! (desculpe novamente, mas foi o que quis dizer). A velha, além de pregar meu pé no chão, me acertou forte com o ombro no meio do peito, meu corpo quis ir pra trás com o golpe, mas meu pé estava preso no chão. Fiquei com uma mão segurando o apoio melequento do ônibus, e a outra mão, foi involuntariamente contraída pelo trauma que meu pé sofria e esmagou o livro que eu segurava. Acabei com o livro, estava novinho, ainda fedia verniz de tão novo. Tudo isso foi numa fração de segundos até a velha desocupar o meu pé e sair andando, dramaticamente lenta. Subi para o ônibus com os calcanhares, meu dedo latejava e fiquei com uma tosse instalada na garganta por causa do baque no peito.


Porém, senhores, meu castigo não poderia ser assim, tão simples. Passei a catraca e logo sentei no banco que fica de frente para o cobrador e no assento da janela. A minha frente havia um cofre que fica abaixo da cadeira do cobrador e eles escrevem com tinta branca - deve ser aquele corretivo - a seguinte frase: "É favor não por os pé", desculpe, mas não desta vez. Meti os dois pés ali. E o esquerdo que foi pisado eu fiquei olhando com dó e pela janela observei a velha andando toda torta Praça da Sé adentro.


No assento junto ao corredor deixei o livro, todo amassado. Limpei o suor da testa com as duas mãos e tentei me abanar – de um jeito bem tosco, daquela forma idiota, tipo se abanar com a mão e com os dedos abertos, não produziria uma única brisa nem em um bilhão de anos –, ou seja, nada adiantou. As pessoas não paravam de entrar no ônibus e ele permaneceria ali parado até entrar mais pessoas do que oxigênio. Travei uma batalha para continuar consciente, por um instante me senti sufocado pela idéia de ver tantas pessoas entrarem no ônibus, mas foi só por um momento. Logo percebi que esqueci o livro no assento e num reflexo de bondade, meu braço involuntariamente tirou o livro do assento. No mesmo minuto a catraca estava sendo sacudida por uma imensa mulher, e ela viu quando o livrou desocupou o banco, na hora o paquiderme pensou que eu estava sendo gentil e... oh não... please, não era a intenção, não quero ser bom... não.... NÃÃÃÃÃÃÃÃO - Cabum! Ela sentou-se ali, ao meu lado. Não exatamente sentou-se, mas precisamente se jogou no banco. Meia bunda e uma perna inteira certamente ficaram para fora do banco ocupando boa parte do corredor. Ainda, ela teve a manha de se acomodar melhor. Chacoalhava toda aquela massa mole contra meu corpo e ainda me acertou algumas vezes com uma bolsa preta que tinha o nome de um curso bordado em branco bem no meio da bolsa.


Tentei encará-la e demonstrar meu desconforto, porém sua cabeça estava muito distante, talvez houvesse uns quarenta centímetros entre a cabeça dela e o final do ombro, e depois disso estava eu, meu corpo comprimido contra a janela e a parede revestida Fórmica velha. Era melhor que houvesse um interfone entre nós, assim eu poderia falar com ela. Continuei a encará-la e nada. Então ela parou de se mexer. Fez 'ziiiiiiiiiiiiip' com o ziper da bolsa e mirou para dentro da bolsa. Ficou fixa, paralisada. Eu também fiquei parado, olhando seu rosto imóvel, inclinado e sem expressão. Cheguei a pensar que houvesse uma TV ligada dentro da bolsa. Fiquei curioso, resolvi esticar o pescoço e olhar, e então entendi. Dentro da bolsa estava toda a resposta para tudo aquilo que estava do lado de fora. A bolsa continha toda a sorte de guloseimas, todas elas: chocolates, bolachas, docinhos, balinhas e chicletes. Então é isso que ela faz, pensei. Só come!


De repente, ela saiu do transe, seu braço sumiu dentro da bolsa e reapareceu com um Suflair que também sumiu com três mordidas. Eu disse: três mor-di-das. Logo ela começou a escolher outro item e finalmente o ônibus começa andar.
Olha, quero ser bom, juro. Se ela tivesse um treco qualquer que a fizesse ficar tão grande, era uma coisa; agora, enfiar goela abaixo todo o açúcar dos chocolates e carboidrato das bolachas, é outra coisa. E ainda mais, ficar me espremendo num canto só elevou meu ódio.


E assim foi: bolachas e balinhas, devoradas sem julgamento algum enquanto eu limitado a poucos movimentos, fiquei assistindo o cetáceo encurtar a vida ingerindo todas as calorias escondidas na bolsa. A criatura era muito branca, quase reluzia, parecia uma beluga, e ainda usava uma roupa clara. Será que ninguém ensinou o toquezinho da roupa preta? Que dá uma disfarçada e engana o volume? Ela não se preocupava com isso, queria comer e esgotar a reserva da bolsa. A boca não parava, os braços descobertos amarrotavam a pele ora num canto, ora em outro. Apesar de tudo, o número da pele era maior que o corpo, sobrava-lhe couro.


Eu nunca fui até o ponto final desta linha. Fica longe? Não sei. O monstrengo do meu lado sabia, ou iria até lá? Também não sei, mas sei que ela, depois de enfastiar a mandíbula, simplesmente, dormiu. É, acredite, dormiu. E dormiu de ressonar, largar o corpo, até parecia que o tronco encolheu um pouco. De repente o braço direito começou a deslizar e foi se mexendo pensei que ia cair sobre meu colo. Eu não agüentei e quis rir. Aquilo não era possível. O cobrador contava um maço de dinheiro e toda hora perdia a conta porque ficava rindo da minha situação. O sujeito até tinha uma cara engraçada, o que me forçou a rir, e foi quando baixei a cabeça para esconder a risada e vi uma mancha estranha na minha blusa. A mancha parecia um monte de poeira de cor marrom-escuro, bem no centro do peito. Passei o dedo e subiu um fedor horrível de mofo. A velha trapalhona, quando me acertou ao descer do ônibus, transferiu uma colônia inteira de mofo daquele casaquinho surrado. Não quis rir de mais nada.


Passei o resto do trajeto mais apertado ainda contra a parede para evitar que o braço continuasse seu progresso maligno. Mais a frente era o ponto onde eu desceria, e sabendo da multidão que estava dentro do ônibus, resolvi levantar antes, para isso, senhores, pulei pelo banco a montanha-de-carne, porque nem o cobrador, afundando metade do dedo no ombro da moça, ela acordava.

Trabalhei o dia todo, apenas imaginado o que teria acontecido com meu dedo. Quando voltei para casa, me enchi de coragem e verifiquei o dedo, a unha estava destruída em três partes. Pela manhã precisei ir até uma cirurgiã que já me conhece de outros carnavais e sabe o quanto sou cagão. Quando o assunto é mexer no corpo: fazer cortes, tirar uns nacos, costurar, e coisas parecidas, eu perco os sentidos. Para evitar uma lenga-lenga frescurenta e essa possível perda dos sentidos, ela pegou um alicate - que pra mim, é um instrumento medieval - e estripou da carne a unha.


Agora serão mais de trinta unidades de Cetoconazol e muita grana que vou gastar. Desta vez não pode falhar... ganharei super poderes, yeah!
O Paciente apresentou quadro de delírio em 24.4.07
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