5.2.07

O rubi, o coração de ouro e a brasília vermelha

A origem de todo o mal. Parte II.


Mil novecentos e noventa e um. A quinta série num colégio de freiras começaria e seria também o meu último ano naquele lugar. Embora todos os outros anos tivessem sido exatamente iguais, este, conforme sua própria maneira de enumerá-lo, seria impar. Mas igual, exceto por um pequeno detalhe. Ou melhor: dois pequenos detalhes.


Pois bem... no início daquele ano, de algum modo estranho e nebuloso conheci a Tatiana. Mais nova, mais esperta e muito bela, só perdendo para sua amiga Flávia no quesito beleza.


Nossa amizade começou de forma boba. Nós, basicamente sobrávamos, ela mais do que eu. Enquanto um senhor não a vinha buscar no final das aulas eu ficava por ali até que ela fosse. Eu ia sozinho para casa – mamãe confiava que eu atravessaria a rua sem ferimentos graves.


E todos os dias eram assim. Encontrávamos no final do período no mesmo banco para aguardar o mesmo senhor e sua brasília vermelha. Ela prendia coisas coloridas no cabelo e às vezes uma polaina nos tornozelos, isso era menos estranho que o meu bolso cheio de moedas, os rendimentos do dia – depois explico isso. Minha função básica ao lado da Tatiana, além de admirá-la muito, era também, ouvi-la. Falava-me muito da irmã e da mãe, nunca sobre o pai. Ele não deveria existir, eu pensava. Seus assuntos envolviam drama, briga, desgosto com a família e as coisas que ela aprontava. Eu gostava de suas histórias e reclamações, eram criativas e as coisas não pareciam ser tão cruéis o quanto ela dizia, talvez o seu humor fizesse parecer assim. E ela, do mesmo modo, gostava do que eu tinha a dizer.


Preciso confessar que o capitalismo começou a me fascinar já naquela idade – isso explica as moedas, mas não pára por ai. As freiras deram um jeito de poupar o trabalho de alguns funcionários e inventaram uma recompensa a quem devolvesse na cantina da escola uma garrafa vazia – o famoso casco. No intervalo das aulas a molecada comprava lanche na cantina e largava a garrafa em qualquer lugar, então, a necessidade do incentivo. Você poderia trocar a garrafa esquecida por um punhado de balas ou alguns centavos. Havia um bom motivo para eu preferir o dinheiro: no prédio – onde moro até hoje –, ao final da tarde daquela época, passava o lendário Tio do Doce e sua sacola abarrotada de quitutes muito mais deliciosos que as duras balas de maçaroca com anilina da cantina, e mesmo com tanta opção eu era pragmático com o amendoim doce. Coletar moedas durante o intervalo era fácil e a coisa toda funcionava bem. Para dar conta de tanta garrafa perdida eu 'recrutei' um bando de pivetes mais pivetes do que eu, todos da primeira série, os quais iriam angariar o maior número de cascos ao troco de um punhado de balas – ou mãozada, como eles diziam. Uma garrafa que eu trocasse já 'pagaria' os meus arrecadadores, e a grana, ia direto para o meu bolso. Infelizmente eu só tinha um bolso na calça.


Não sei como exerci tal poder sobre as pequenas almas. Talvez fosse meu assustador aparelho extra-oral, o notável capacete. Um conjugado de ferros, elásticos e um pedaço macio de camurça azul-marinho que ficava na nuca e tencionava o artefato contra o maxilar. Um charme aterrorizante. Mesmo assim eu tinha o crédito e a companhia da Tatiana todas as tardes ao meu lado.


Chegou o tempo em que tirei aquele treco da boca e não precisava mais usar. E sempre, ao final dos períodos, quando o sol é mais laranja, encontrávamos e domávamos o tempo, e quando a conversa terminava nos abraçávamos e sustentávamos nossos corpos sobre o mesmo banco de concreto. Meus dedinhos ficavam entre seus cabelos e ela murmurava uma canção enquanto eu experimentava uma felicidade tranqüila e sem interrogações.


Mas uma tarde foi diferente, uma tarde ela se mostrava muito ansiosa. Sua atenção fixava-se no meu rosto, a maior parte do tempo nos meus olhos, que me examinavam com entusiasmo, como se em toda a sua curta vida eu não estivesse ali e agora eu era algo novo e bom. E ficou assim, falando de coisas alegres, sendo amável e feliz, sem o menor medo da altura que isso poderia levá-la. Ela sorria e me enchia também com alegria. Quando não havia mais ninguém a vista, ela agarrou minha mão e saiu correndo comigo. E eu ia, corria pelo vazio, com o braço estendido, guiado por ela, seguindo suas gargalhadas até uma escadaria, num lugar vazio e aberto, onde o vento soprava em espiral e as folhas subiam do chão, e tudo era uma chuva ao contrário com o perfume das flores ao nosso redor. Ali paramos. Ela planejou aquilo, só podia, ela me pôs num degrau e ficou num outro acima do meu, ficando da minha altura. Permaneci em silêncio tentando entender aquilo. Ela ergueu minha mão direita fazendo com que a palma permanecesse perpendicular ao meu corpo e disse: “Espere”. Esperei os segundos mais eternos que pude experimentar. Esperei tentando controlar o fôlego e a ansiedade. Minha mão ali, parada, esperado sabe-se lá o quê. Então eu vi sua mão, que remexia seu bolso, surgir cerrada e trêmula. Meus olhos acompanharam seu movimento até sua mão ficar sobre a minha. Ela abriu lentamente a mão e eu senti dois pequenos objetos caírem sobre minha palma, um de cada vez.


Seu delicado dedo indicou e descreveu cada item sobre minha mão: "Este é um coração. Ele é de ouro. E esse menor, é um rubi." Continuei estático como se meu corpo fosse de um denso e pesado metal. Sua mão direita segurava a minha cuidando para que eu não deixasse os objetos caírem e eu tremia. Com a outra mão ela fechou vagarosamente meus dedos até que a minha mão ficasse entre suas duas mãos e recomendou: "Fique com isso. Será sempre seu. O coração é como se fosse o meu e o rubi é a nossa amizade". Ela soltou minha mão e disse: "Eu te amo, esta é a prova do meu amor". Meu estômago dobrou-se ao meio e minha nuca ferveu a 50 graus. Fiquei sem ação e antes que qualquer pensamento pudesse se formar fui envolvido num carinhoso abraço e afetuosamente seus lábios tocaram os meus. E foi um beijo. Um beijo tão delicado e sincero que uma fada adormeceria entre nossos lábios. Os dias foram felizes.


Porém, os negócios iam mal. Eu não queria mais juntar moedas para comprar doces. E antes que eu pudesse me livrar dessa responsabilidade, fui cobrado pela Tatiana. Desde cedo, os negócios estariam entre eu e o coração. Discutimos na hora do intervalo porque um bando irritante de moleques rodeava-me com garrafas e eles não entendiam que as balas vinham da cantina. Eu só queria que eles sumissem com os vidros. Eles continuavam a pensar que eu era o excelso provedor de balas – não consegui convencê-los do contrário. O quebra pau teve uma pausa com tempo suficiente para eu notar a aproximação da Flávia que vinha das mesas de pebolim. E quem é a Flava? Eu digo. A Flávia era uma garota que sabia como andar, como se locomover. Absolutamente habilidosa na simples arte de andar. Se os ortopedistas dizem que seres humanos não andam e sim executam uma queda controlada, é porque eles não conhecem a Flávia. Ela driblou a natureza e era dona do conjunto de membros mais harmoniosos daquele colégio. Tudo. O cabelo, a pele e aqueles olhos que te fariam confessar qualquer coisa. Assim, resumidamente, era a Flávia. Ela chegou, e postou-se ao lado da Tatiana. A discussão recomeçou e poucas palavras depois a Flávia interfere dando razão a Tatiana e para mostrar lealdade e afirmar sua posição contra mim ela avança e tenta me empurrar.


Tive o reflexo de afastar o corpo, mas não o bastante e fui vencido por um desnível no chão. Desabei com as mãos para trás e ela sentenciou: "Fraquinho!". Levantei do chão e fitei fundo nos olhos da Tatiana e não encontrei apoio. Ainda, sentindo minúsculas pedras grudadas nas minhas palmas, fechei o punho e acabei com o maior trunfo da Flávia: a beleza de seu rosto. Todos os meus cinco dedos afundaram seu olho esquerdo na órbita, e ela, dramaticamente, foi ao solo. Pude ‘sentir’ a Tatiana lançar um olhar de condenação. Senti vergonha, corri e desapareci.


Consegui resgatar minha mochila na sala de aula, ainda durante o intervalo. Voltei para o páteo e fiquei escondio perto de uma escada que dava acesso ao convento, atrás de duas estátuas de gesso, eram dois anjos. Quando o sinal tocou, aproveitei a movimentação das freiras que iam em diração aos portões e fui para perto da secretaria, evitando outros alunos e professores, temendo que estivessem a me procurar. Só tinha estado naquela parte do colégio apenas uma vez e mal sabia onde era a saída. Segui por um corredor e reconheci a porta da rua, abri e sumi dali e da vida da Tatiana.


No dia seguinte eu não tinha garrafas, o bolso estava vazio, o olho da Flávia estava um roxo azulado e muito escuro. Nunca fui punido. A Tatiana ia todos os dias embora com o mesmo senhor que guiava a mesma brasília vermelha. Por muitas vezes a vi passar na rua onde moro, meus olhos a seguiam, e ela, debruçada no banco de trás olhava-me silenciosa e protegida pelo vidro.


Nove anos se passaram. Haveria uma festa Anos 60 no Tusp – na Rua Maria Antonia, para ir à festa tomei emprestado uma jaqueta de couro. Antes de ir à festa notei um isqueiro deixando no bolso da jaqueta, pensei em devolvê-lo, mas decidi fazer isso na volta. Na festa, depois de dançar bastante fui para uma fila apanhar umas bebidas e vi a Tatiana sentada numa bancada próxima ao final da fila. Meu coração bateu forte e toda a memória sobreveio claramente. Tentei permanecer controlado e agir com naturalidade, como alguém parado numa fila, era tudo que eu precisava fazer. Ela não me via. A fila andava rápido e a cada passo ficávamos mais perto. Meus olhos grudaram nela e não havia músculo ou nervo que me obedecesse. Continuava ali. E pouco antes da minha vez, a vi abrir a bolsa, puxar um cigarro e abraça-lo com os lábios, e revirava a bolsa. Eu saí da fila, caminhei em sua direção e rapidamente estendi a mão e a chama de um isqueiro alheio. Ela não olhou nos meus olhos, apenas seus dedos, menos jovens que outrora, tocaram o dorso da minha mão e fez a chama se aproximar de seu cigarro até que ele acendesse e ela pudesse tragá-lo um pouco mais forte e fazer a ponta do cigarro ficar mais iluminada. Ela agradeceu com um sorrio e só neste momento seus olhos viram os meus. Eu deixei o isqueiro apagar e afastei a mão. Ela desviou o olhar e noutro instante ela voltou os olhos mais atentos. Tive tempo de registrar aquilo e dei as costas. Não sei se fui reconhecido, mas percebia seus olhos investigadores a me seguir. Não peguei as bebidas e justifiquei para a minha companhia da época apenas parte dos fatos.


Depois da festa, três anos se passaram e fui presidir a sessão 85 da quarta zona eleitoral nas eleições para prefeitura de São Paulo. De saco cheio, parado do lado de fora da sala, no corredor da escola pública reconheci o mesmo passo elegante a muitos metros. Era, inconfundivelmente, a Flávia. Minuto a minuto, centenas de pessoas passam por ali, mas sua presença era notável. Na fila da minha sessão tinham quatro pessoas aguardando e para a minha surpresa a Flávia parou na fila. Mais quatro pessoas chegaram juntas e a fila ficou maior. Um assistente saiu da sala para recolher os documentos e eu mandei que voltasse e comecei a recolher os documentos. Um a um até o dela, conferi o nome e congelei. Mais um segundo para respirar e disse: "– Quanto tempo, Flávia." Ela ficou olhado com espanto e enquanto me perguntava de onde nos conhecíamos eu recolhia os outros documentos e entregava ao assistente ignorando a pergunta dela. Propositalmente deixei o documento dela abaixo de todos, assim sua chamada seria atrasada.


Conversamos por menos de dois minutos e ela ria das coisas que eu dizia. Nada falei sobre agressão, tampouco qualquer coisa que me tornasse evidente, qualquer coisa que me revelasse eu evitei. De certo ela não se lembrou ou fingiu com maestria. A voz do primeiro secretário da sessão vinha de dentro da sala chamando-a. Ela exerceu sua função de cidadã e ao sair conversamos por mais alguns poucos segundos. Depois nos despedimos com um quase abraço, aquele do tipo que você nem chega a encostar na pessoa. Com grande remorso a observei ir embora e o mesmo sentimento pusilânime de treze anos atrás esmagou minha moral com furor e tive vergonha de não ter dito: desculpe.


Semanas depois da minha briga com a Tatiana, eu estava na janela do apartamento onde morava, no terceiro andar. Dali, lancei janela a fora o rubi e o coração de ouro. Cada um, segundo o peso de sua massa, caíram sobre o asfalto quente, segundos antes de uma brasília vermelha passar.

O Paciente apresentou quadro de delírio em 5.2.07
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