31.5.06

Nota 8,75

Praça João Mendes - Eldorado, ou simplesmente 5611/10, esta é a linha do ônibus que tomo para chegar ao escritório. Se você conhece essa linha, sabe que o pior horário para tomá-lo é às 8h da manhã de qualquer dia do ano. Se você não conhece, agora já sabe. O número de usuários que os aguardam a essa hora do dia é quase impronunciável. Sem mencionar que o ônibus quando chega ao ponto ele já está completamente tomado de pessoas do lado de dentro, sendo assim, existem basicamente duas formas de entrar neste ônibus, a) com a força bruta e b) com muita força bruta.


Ambientes públicos são excelentes laboratórios para quem curte estudar o comportamento humano. Esse ônibus, por exemplo, provoca estranhas manifestações nas pessoas do lado de fora. Quanto maior é o número de pessoas já dentro dele, maior é o desespero desenfreado das pessoas do lado de fora para adentrá-lo. Como se isso fosse sei lá, assustar os espaços preenchidos e torná-los vagos?


Curiosamente, nesta manhã, fui a única alma de todo um ponto de ônibus absurdamente lotado a subir neste ônibus. Um fato muito estranho considerando a circunstância acima. Curioso também foi o volume de pessoas dentro dele, acho que meia dúzia de pessoas. Paguei a condução, caminhei pelo corredor até perto da porta de saída e sentei-me no lado esquerdo em um daqueles bancos que são mais altos. Abri meu livro e comecei a esquecer que estava sentado num desconfortável banco de plástico injetado, duro e torto.


"Algumas pessoas com síndrome de Tourette têm tiques de arremesso - ímpetos e compulsões, súbitos e aparentemente sem motivo, de..." Acho que foi nesse parágrafo, quando o motorista repentinamente parou aquela lata com rodas. Na hora não consegui entender o que estava acontecendo, olhei em volta e notei que parávamos um pouco fora do ponto. De relance vi uma mulher em uniforme predominantemente azul-marinho - uma aeromoça, muito freqüente nesta linha que passa em frente ao aeroporto - ela vinha para entrar no ônibus. A porta da frente se abriu.


Através da porta, subia uma figura feminina que conseguiu atrair toda a atenção dos presentes no coletivo, só havia homens. Todo o dia vejo essas comissárias, mas essa era diferente. Começando pelo seu uniforme muito incomum, seu corte era ousado, decotado, manga curta e folgada. Sob o terninho uma blusa branca também decotada e o seu volume mamário extraordinário. A saia muito pequena e não usava coque. Comumente os coques são horríveis, são presos de forma tão selvagem, com tanta força que as mulheres que usam parecem sorrir involuntariamente. O cabelo dela estava solto, era comprido e escuro.


Ela parou na catraca, abriu uma pequena bolsa e começou a procurar algo. O cobrador teve uma apnéia momentânea e ajustou a calça para disfarçar uma ereção descarada. Por fim ela achou o cartão e liberou a catraca. Caminhou pelo corredor, ciente de todo o seu esplendor. Disseminando todo seu feromônio dentro daquela jaula com rodas e cheia de machos. Continuou sua marcha provocativa e sentou-se do lado direito do ônibus exatamente paralelo ao meu banco.


O dia estava abundantemente iluminado, e apesar disso estava frio, as janelas fechadas aprisionaram no ambiente o perfume daquela mulher que ficou por ali atiçando o imaginário masculino.


Os outros homens sentados mais a frente não conseguiam disfarçar o quanto estavam inquietos, pareciam estar sentados em formigas, mexiam-se para olhar para trás fazendo movimentos acrobáticos com a cabeça. Qualquer ortopedista consideraria muito perigoso mover a cabeça daquela forma, principalmente quando a cabeça está sobre um pescoço.


Imediatamente o livro sobre psicologia e neurologia que lia ficou desinteressante.


As proporções anatômicas da jovem eram diametralmente perfeitas. Ela ignorou a curta saia que usava, cruzou a perna esquerda sobre a direita e isso forçou o corpo a assumir uma nova postura, completamente provocante, até a luz do sol que entrava pela janela fez questão de iluminá-la de forma especial. O novo ângulo desenhava brilhos mais intensos sobre a perna e agora os volumes se tornavam exatos. Despreocupadamente passou a mão esquerda no rosto e no mesmo movimento revelou seu perfil deixando boa parte do cabelo atrás da orelha. A maquilagem leve e simples deixava todo o espetáculo para o rosto de expressão forte com traços retos e sutis. Completamente desejável. E agora mais de perto, todas as observações anteriores se confirmavam, o cabelo era como um manto leve e de volume ideal, absolutamente bem cuidado.


Uma pena a viagem ter sido rápida. A 23 de Maio com trânsito livre deu liberdade e espaços vazios para o motorista afundar com ódio o pé no acelerador e desejar ser um passageiro só naquele dia.


Desço no próximo ponto. Aproveitei o ônibus parado um ponto antes e levantei, dei o sinal, parei na porta e esperei. Desta vez eu via apenas a moça de costas.


O ônibus ainda estava parado quando ela se mexeu de maneira estranha no banco e tossiu. Fez um som semelhante ao de um cão rosnando, levantou rapidamente, abriu a janela acima de seu banco, pôs as mãos na suja e maltratada esquadria de inox, deixou seu corpo curvar levemente para trás, respirou fundo fazendo suas costas crescer, e em seguida moveu o tórax rápido para frente junto com a cabeça e... UAU! Que bela escarrada ela deu.


Expulsou com violência uma massa verde disforme e pesada que girou no ar algumas vezes antes de atingir o chão onde ficaria grudado, agora desprezado e depois pisado por alguém distraído.


Gostaria de ter voz de jurado de escola de samba só para dizer: Nooooooooota Oito e Setenta e Cinco!


A execução foi ótima, muito boa mesmo, mas pecou na finalização. Sujou o cantinho da boca e limpou com o dorso da mão, não pode. Desconto de 1,25 pontos. Achei justo.
O Paciente apresentou quadro de delírio em 31.5.06
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9.5.06

Exceções e relatividade - parte I

Considere assim, ou na ordem que desejar: Arrancar-lhe as unhas com uma agulha torta, ser degolado com uma faca cega, jogar-se nu contra o arame farpado e mastigar a tampa da lata de atum aberta com um abridor enferrujado. Tudo é agradável, exceto o desprezo.
O Paciente apresentou quadro de delírio em 9.5.06
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1.5.06

Dá um conto!

No feriadão do dia Mundial do Trabalho eu fui até um ponto de ônibus para pegar o Vila Livieiro. O Vila Livieiro é o tipo de ônibus que durante a semana quase não passa, no feriado então, não passa duas vezes.


Conferi o relógio no celular que indicava: 14:20 cravados. Olhei para os lados e a rua mostrava-se deserta. Dez minutos mais tarde eu havia contado a passagem de uns três carros em velocidade típica de um domingo, moroso e sem graça. Para passar o tempo fiquei contando o número de passos do ponto até o próximo poste, o número era sempre 26. Depois de inúmeros testes peguei bronca do número 26. Mais uma conferida no relógio e desta vez: 14:40.


Levantei os olhos na direção de onde deveria vir o ônibus e avistei um velho lá na esquina bem longe, que andava tão devagar quanto uma lesma com sono e mancava da perna direita. Eu estava sentado numa pequena mureta e a bunda já estava doendo e tomando a forma do assento provisório, então eu levantei e fiquei observando o velho.


Depois de muito tempo, o velho finalmente chegou até o ponto. Estava muito bem vestido e sua aparência era serena. Ficou ali um tempo parado me olhando, e então disse:
- É melhor você sentar porque é feriado e o ônibus vai demorar.
- Cansei de ficar sentado e agora estou em pé.
- É, vai ficar cansado outra vez. - disse o velho.

Assim, debaixo de uma árvore, num ponto de ônibus sem ônibus, eu e aquele velho ficamos conversando. O cara é uma grande figura, contou tudo sobre ele: por onde já trabalhou, como foi dura a faculdade de Administração de Empresas no interior de São Paulo, sua mãe de 84 anos é velha mas é um touro e toma conta dele até hoje; falou também sobre o acidente que sofreu no ano passado, as mulheres de sua vida, os programas com os amigos, o futebol, o sonho de ser músico, enfim, ficou ali, narrando uma série de historias engraçadas, e hora e outra tínhamos que espantar uns mosquitinhos que saiam da árvore e nos perturbavam. O ônibus? Nem sinal.


De repente, do deserto instalado naquela rua, surge um cara com a metade da minha altura usando uma mochila da minha altura e todo sujo. Fomos abordados:
- Com licença, alguém tem cinqüenta centavos? - perguntou com o olhar fixo no vazio.
Antes que alguém pudesse entregar uma resposta ele continuou:
- Olha, eu não bebo! Eu só quero ir pra casa. - nessa hora todos os mosquitos sumiram, o bafo de pinga era tanto que seria possível criar uma fogueira com um espirro daquele homem.

Em seguida o homem-com-bafo-de-pinga-que-não-bebia, começou a falar sobre um problema que tem na cabeça e por isso precisava ir embora e, afastando o cabelo mostrou que realmente faltava um bom pedaço de osso do crânio. Meu estomago queria ir para um lado e o meu corpo para outro. O velho começou a falar alto e pôs a perna direita na mureta, levantou a calça até o joelho e mostrou a canela toda machucada. Era horrível, a pele parecia um glacê de bolo, úmido e opaco, frágil e nojento, a pele fina exibia pequenas veias e uma parte do osso da canela. O outro homem, o homem-com-bafo-de-pinga-que-não-bebia, dava sua replica alegando tomar Gardenal e tarja preta. Eu apertava os olhos querendo ignorar a cruel disputa pelo troféu "Eu sou mais fudido que você". O velho começou a falar mais alto ainda mandado o cara de meio metro ou menos, ir embora, e que o bafo dele era uma merda e que não daria dinheiro nenhum. Completamente insultado o homem-com-bafo-de-pinga-que-não-bebia saiu andando e reclamando numa língua desconhecida.


O velho iniciou uma elaborada palestra sobre as diferentes formas de abordagem. Fez duas ou três sugestões excelentes de abordagens que poderiam render sucesso ao homem-com-bafo-de-pinga-que-não-bebia e algo mais que cinqüenta centavos.
- Esse cara é burro, - continuava - se realmente quisesse ir embora, iria ao ponto onde passa o ônibus que ele precisa e pediria dois reais, e não cinqüenta centavos. Cara trouxa!

Eu apenas ria enquanto o discurso seguia:
- Ele poderia ser mais esperto. Antes fosse até a Praça Campo de Bagatelle ver se ganhava um apartamento no sorteio logo após o show do Calipso.

Essa foi ótima, se o velho tivesse um Orkut, eu dava-lhe uma estrelinha de fã.


Os impropérios contra as pessoas-que-pedem-dinheiro não cessou, ele tinha as mais variadas teorias sobre o assunto. Falou sobre comportamento, opções de vestuário, e que ter uma criança junto é muito importante pois as pessoas ficam sensibilizadas e que ficar mostrando ferida era uma mesmice da Escola Antiga (Escola Antiga?! Tem escola de esmola? E é antiga, ou sei lá, tradicional?), atestado médico qualquer um consegue, é muito fácil, basta conversar com algum homem-placa na Praça da Sé que você arranja um.


Depois dessa de Escola Antiga, o cara merece um depoimento no Orkut.


E a aula no feriado não terminava, eu dobrava de rir de tanta genialidade do velho com a perna arrebentada.


Por fim o ônibus apareceu lá no outro farol, era ele, o bendito Vila Livieiro, conferi o celular e, fiquei espantado, já eram 15:30!!!!. O velho conseguiu enxergar o ônibus e estendeu a mão para uma despedida, desejou boa sorte e soltou essa:
- Dá um conto ai, pra eu tomar uma branca!

Eu dei um real, e agora ele merece uma comunidade.
O Paciente apresentou quadro de delírio em 1.5.06
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